Pesquisar
, ,

Frei Betto: o MST e a luta pela terra

Frei Betto detalha como se organiza o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o maior movimento social brasileiro, com presença em 24 estados do Brasil
Frei Betto
Integrantes do MST em Campo Largo (PR) em ato em memória do Sem-Terra Antônio Tavares Pereira, assassinado no ano de 2000. (Foto: Wellington Leno / BdF / Flickr)
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) nasce, há 40 anos, com três objetivos: lutar pela terra, para que famílias organizadas no movimento conquistem terra suficiente para sobreviverem com dignidade do próprio trabalho; lutar pela reforma agrária, o que significa reestruturar a propriedade fundiária e o uso da terra; lutar pela transformação da sociedade.

Para alcançar tais objetivos, o MST se definiu, desde o início, como “movimento de massas, de caráter sindical, popular e político”. De massas, porque a correlação de forças só pode ser alterada a seu favor pelo número de pessoas organizadas; popular, porque é uma organização aberta à participação de todas as pessoas que desejem lutar para trabalhar na terra. O MST possui, ainda, caráter sindical, porque a luta pela reforma agrária tem também dimensão econômica e de conquistas reais e imediatas, mas também caráter político, pois a reforma agrária só poderá ser alcançada mediante a transformação estrutural da sociedade.

Hoje, o MST atua em 24 dos 26 estados do Brasil, o que o diferencia dos movimentos que o antecederam, como as Ligas Camponesas. Com atuação local e regional, foi possível serem isolados pelas forças repressivas. Presente na maior parte do território nacional, o MST tem condições de apoiar estados com mais dificuldades e nacionalizar as lutas locais, amplificando sua repercussão.

A consolidação e a força do MST se devem ao número de pessoas que organiza. O fundamental no método de organização é colocar as pessoas em movimento e, pela prática, desenvolver sua consciência política e social.

A primeira forma de luta são as ocupações de terras. Antes ou durante a ocupação de uma área, o MST organiza acampamentos de famílias sem-terra. A articulação dessas famílias é feita pela identificação de territórios onde os camponeses estejam concentrados e pelo trabalho de base. As famílias participam da organização do futuro acampamento e buscam formas de conseguir lonas para os barracos, transporte para as famílias realizarem as ocupações etc. Ou seja, criam condições para a futura ocupação.

Ao ingressar em um acampamento, as famílias são organizadas em núcleos de base de 10 a 20 pessoas. Esse pequeno número é para que os integrantes possam se conhecer e evitar infiltrações de desconhecidos. Além disso, divididos em pequenos grupos, mais pessoas podem debater e opinar sobre questões de organização política do acampamento. Nos núcleos, todos têm o direito à palavra, incluindo as crianças.

No acampamento, as tarefas são organizadas e distribuídas coletivamente: buscar água e lenha, organizar doações de alimentos, montar barracos, realizar a segurança, educar as crianças etc. Essas tarefas são feitas em equipes dos núcleos de base. Todo núcleo tem um participante nas equipes de trabalho. Assim, todos participam da vida política e das atividades organizativas.

Nos acampamentos são comuns assembleias para decisões coletivas, como ocupar ou não um latifúndio, recuar ou não em determinada luta. Quando a terra é conquistada, ela se torna um assentamento de reforma agrária. Este foi um dos primeiros desafios do MST: como manter organizadas as famílias que já haviam alcançado parte dos seus objetivos com a conquista da terra? Há o risco de a sociabilidade e a cooperação existentes no acampamento se perderem nesta transição. Por isso, o movimento desenvolveu mecanismos para manter os assentados motivados.

Primeiro, os anos de vivência em acampamentos produz identidade. Os trabalhadores organizados se identificam como Sem-Terra (com letras maiúsculas). Essa identidade permanece mesmo depois de conquistada a terra. Assim, compartilham histórias de lutas, se identificam com as famílias ainda acampadas e cultivam valores como o internacionalismo e a solidariedade.

A organização do território conquistado traz novas demandas: crédito rural, educação, saúde, cultura, comunicação etc. Para alcançar as novas reivindicações, o MST mantém os núcleos de base por vizinhança. A cada nível organizativo – acampamento, assentamento, região, estado e nacionalmente – se constitui uma instância de direção coletiva.

No MST não há um “presidente” ou cargo semelhante que concentre em si as decisões políticas, ou diferencie o dirigente dos demais militantes. Todas as instâncias no movimento, da base à Direção Nacional, são coletivas e com mandatos de dois anos. Assim, se combatem o centralismo e o personalismo. E há divisão de tarefas: todos devem ter, em maior ou menor grau, responsabilidades dentro da organização para que não haja nem centralização excessiva, nem sobrecarga dos militantes.

Quanto mais complexa a realidade e maior a organização, mais equipes são formadas; organizam-se em setores em níveis estaduais e nacional para planejar e executar tarefas mais especializadas, como Produção, Frente de Massas, Educação, Formação etc. Por exemplo, todos os educadores ou envolvidos na educação de um mesmo conjunto de municípios formam o setor de Educação, que elabora propostas pedagógicas e atua na vida escolar. Na Produção, os militantes organizam a vida econômica, as cooperativas, assim como a tecnologia agroecológica para o cultivo.

Nesses coletivos também se incorporam sem-terras, como o Coletivo LGBTQIA+, possivelmente sem similar em outras organizações camponesas. Outro exemplo de participação são atividades e encontros com os “sem-terrinhas”, os filhos dos camponeses. Em julho de 2018, o primeiro Encontro Nacional dos Sem-Terrinhas reuniu mais de mil crianças para um acampamento de estudo e brincadeiras em Brasília.

É a ação prática, a luta, que permite que a consciência política não adormeça nos acampamentos e assentamentos. O MST, solidário com os valores humanos e socialistas, não fica apenas na retórica. Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, o movimento doou toneladas de alimentos por meio da organização de cozinhas, hortas e comunidades solidárias. Em dezembro de 2023, o MST enviou 13 toneladas de alimentos para as vítimas dos ataques israelenses na Faixa de Gaza.  E neste ano socorreu milhares de famílias afetadas pelas inundações que ainda assolam a população gaúcha.

O MST merece todo o nosso apoio!

(*) Frei Betto é escritor, autor do livro infantojuvenil “Os anjos de Juliana” (Cortez), entre outras obras. Livraria virtual: freibetto.org 

(*) A reprodução deste artigo sem autorização do autor é vetada.

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

Continue lendo

milei
A inflação na era Milei
libano israel gaza
O ataque de Israel ao Líbano usando pagers explosivos faz parte de uma longa história e estratégia de mirar civis
Um jovem chuta 'santinhos eleitorais' que cobrem as calçadas durante primeiro turno das eleições. Na foto, os santinhos voam, enquanto ao fundo uma caminhonete passa pela rua.
Frei Betto: eleições e a síndrome da gata borralheira

Leia também

sao paulo
Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado
rsz_pablo-marcal
Pablo Marçal: não se deve subestimar o candidato coach
1-CAPA
Dando de comer: como a China venceu a miséria e eleva o padrão de vida dos pobres
rsz_escrita
No papel: o futuro da escrita à mão na educação
bolivia
Bolívia e o golpismo como espetáculo
rsz_1jodi_dean
Jodi Dean: “a Palestina é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo”
forcas armadas
As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1]
PT
O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT
ratzel_geopolitica
Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais
almir guineto
78 anos de Almir Guineto, rei e herói do pagode popular